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Sair de mim própria

September 10, 2011

“— Eu tinha caído no rio que havia perto da rua principal — me interrompeu Cris —, lembro que passava o trem numa das margens, lembro que mais ou menos de duas em duas horas um trem passava apitando feito louco, e eu via pelas janelas rostos amarfanhados de crianças insones, pude ver uma mulher sendo feericamente beijada por um homem, de quando em quando via passar um vagão-restaurante, pessoas sorvendo sei lá quantos tipos de bebidas, garçons meio inclinados, cheios de mesuras, porém o que eu quero contar é que acabei caindo no rio, sentada numa ribanceira lodosa acabei rolando lá pra baixo, lanhei um pouco as pernas, nada de especial, mas o negócio é que fiquei encharcada com a água do rio, e aquilo não sei, me humilhou, me pôs a ficar envergonhada, a não querer voltar para o hotel antes que secasse, mas embora a noite enluarada, seca, a umidade da roupa não arrefecia e resolvi voltar para o hotel, condoída de mim mesma, pois foi essa a maneira que encontrei para voltar, comecei a fazer um esforço para sair de mim própria, a ver de fora aquela menina outra que não eu, isto me diminuía um pouco a vergonha, era aquela triste menina com seus passos indecisos que caíra inteira no rio e não eu, eu apenas a observava, toda penalizada, e quando entrei no hotel e o meu pai me beijou, te juro, que eu estava tão apartada de mim, me olhando de tão longe como numa platéia, que não senti o abraço do meu pai, vi que ele me beijou mas no meu rosto não veio calor de ninguém, e tanto isto é fato que até hoje me lembro, no instante em que notei que o meu pai ia se afastar do seu abraço em mim, neste instante eu olhando tudo de tão longe me peguei afagando meu próprio rosto, como se há muito não soubesse de afago, e pensei se a umidade do meu rosto tinha a ver com a água do rio ou se era eu a transpirar.”

Harmada, João Gilberto Noll, p. 23.