<<

O relato dos relatos
por Camila Régis.
Texto escrito para o projeto Procura-se.

Em seu livro O tempo vivo da memória, Ecléa Bosi declara que “ser inexato não invalida o testemunho, diferentemente da mentira, muitas vezes exata e detalhista”.

A inexatidão foi necessária para a realização de Procura-se. A obra, que consiste na repetição de um discurso – a descrição do rosto de Bruno – para os últimos retratistas de polícia do país, era a princípio um estudo sobre versões. Pensei que seria um experimento curioso: uma análise sobre diferentes perspectivas que pessoas teriam de um mesmo relato e o efeito de todas essas leituras condensadas em um espaço expositivo. Entretanto, nos instantes iniciais do processo, percebi que não apenas as leituras de meu relato seriam distintas, mas o relato em si também teria oscilações.

O método de trabalho era semelhante entre os desenhistas. Minha fala era induzida a seguir o sentido do macro para o micro e as características gerais do retratado eram dadas – “Homem ou mulher? Qual a cor da pele? É gordo ou magro?”. Após essa primeira bateria de perguntas, uma série de questionamentos improváveis – para mim, pelo menos – surgiam. “Ele é mais alto que você?”. Com a resposta afirmativa, uma retratista traçou no papel um rosto em posição ¾, de queixo levemente levantado. A justificativa era que sendo mais alto que eu, esse era o ângulo que mais via de Bruno.

Começar o processo com cada retratista era confiar em minha memória e tentar preencher lacunas que pareciam inexistentes. “Bruno tem alguma pinta ou mancha no rosto?”, era uma pergunta frequente. As primeiras respostas eram sempre negativas. Conforme esse questionamento tornava-se mais comum, minhas afirmações migraram para os “não sei” e “talvez, não lembro”. Mais adiante, pequenos pontos pretos começaram a aparecer nos desenhos. O rosto tinha marcas, mas que antes nunca foram notadas.

A cada novo embate com a face descrita, eu buscava respostas para as questões lançadas pelos retratistas. Eram detalhes, ainda que insignificantes, que só foram percebidos porque a fala, um bloco “sólido” já que era ensaiado, estava constantemente em xeque. O relato era volátil porque ele não dependia apenas de mim – a narradora. Fora do contexto de troca entre os interlocutores, o discurso apenas ecoaria no nada e nunca cumpriria sua missão de se fazer entender. Esse impasse me fazia repensar tudo que falava, por mais que existisse um contrato com a obra (“repetir o mesmo discurso para diferentes pessoas”). O exercício da fala inexata, um ponto que, teoricamente, nega o cerne da obra, é uma das questões mais centrais de Procura-se. Como Ecléa Bosi disse sabiamente em outra passagem de seu livro: “recontar é sempre um ato de criação”.

* Camila Régis é couatora do trabalho Procura-se.