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Pedras: das contradições de uma fotografia impregnada de real
por Priscyla Gomes.




Diante da variedade de formatos, tonalidades e enquadramentos de uma série de fotografias de pedras, o espectador provavelmente pode julgar transparente a relação entre a obra e seu título concluindo deparar-se com uma coleção de imagens de pedras capturados em momentos distintos, em lugares diferentes. Entretanto, uma observação demorada revela a primeira fissura: Pedras é na verdade uma única peça. Só há um objeto clicado nas imagens.

Por que então fotografar diversas vezes um mesmo objeto, a princípio em nada diferente de tantos outros elementos cotidianos? Na obra, o que varia não é aquilo sob foco, mas os princípios fotográficos a que é submetido: fundo, enquadramento, iluminação, ângulo são trabalhados diversamente em cada imagem. O objeto escultórico em vista parece secundário dentro de todo o aparato mobilizado a seu redor. Em seu lugar, passa para o plano principal o antes inobservado: os numerosos recursos pensados para não serem percebidos pelo espectador, mas presentes em toda fotografia de obras de arte, ainda que constrangidos a se encobrir. Recursos próprios não só na catalogação e divulgação realizadas pela fotografia de obras de arte, mas de toda fotografia documental, da qual é uma especialidade. Dispostos lado a lado no conjunto de Moreschi, cada registro reage à neutralidade que lhe é exigida. E logo temos o seguinte corolário: cada documento é único, não importa quantos fotógrafos fossem chamados para colaborar.

O experimento parece agora mais claro: um mesmo objeto submetido ao olhar de vários fotógrafos, que nele exercem o peso de seus códigos profissionais, antes invisíveis quando tomados isoladamente. Contudo, se inicialmente imaginávamos serem diversas pedras, para logo sermos dissuadidos dessa conclusão, agora continuamos sem a certeza de que se trata de uma só. Não há um princípio lógico em associar um objeto à sua imagem: não é possível uma ligação dedutiva entre ambos. Ela é, antes, um salto de fé: imperceptível, simples, corriqueiro, mas altamente ilógico. Portanto, se imagem e objeto não são coincidentes, e se a ligação entre ambos é frágil, então a fotografia é prenhe de discursos sobre o real, mas é ela própria uma ficção. Nela, deve-se suspender o juízo sobre o objeto, do qual nada podemos saber, disposto que está fora de nosso alcance, e no seu lugar indagar o próprio ato de fotografar, esse sim revelado junto à imagem.

Se a ligação entre objeto e imagem é precipitada, então o lugar do documento fotográfico deve ser deslocado. Seu objetivo original, a apresentação de um objeto isenta da influência autoral, já não pode mais ser realizado. Na coleção de Moreschi, a fotografia como documento ganha uma inusitada dimensão estética, da qual antes parecia desprovida. Nessa dimensão revela-se o trabalho de imagem desenvolvido pelos hábitos profissionais, descoberta realizada pelo procedimento ready-made do simples arranjo concomitante desses documentos comumente isolados e inertes. A conquista da estética é acompanhada, entretanto, pela perda da verdade: se um fato único tem representação múltipla, então não há testemunho confiável. Fica em xeque todo o repertório imagético por meio do qual temos acesso aos objetos, um repertório forjado em interpretações veladas, e não mais, como poderíamos pensar, em apresentações patentes da realidade.

* Priscyla Gomes é curadora e integra o Núcleo de Pesquisa e Curadoria do Instituto Tomie Ohtake, São Paulo.