ART BOOK, Sala de Leitura e a arte de criar arquivos ficcionais
por Priscila Arantes. (*)
Paço das Artes, São Paulo, 2014.
Repensar os paradigmas da história e da história da arte tem sido tarefa de estudiosos e críticos desde o início do século passado. Não por acaso as questões em torno ao arquivo e aos dispositivos arquivais tornaram-se tópicos prementes no contexto contemporâneo.
Artistas que trabalham com processos de catalogação e arquivamento, que criam arquivos fictícios e/ou que desenvolvem projetos a partir de uma modalidade arquival são alguns dos procedimentos que encontramos nas práticas atuais. É dentro desta perspectiva que se inscreve ART BOOK; uma enciclopédia ficcional de arte contemporânea composta por 50 artistas e 311 obras, criada pelo jovem artista Bruno Moreschi.
O texto editorial da enciclopédia, escrito pelo artista e sua suposta equipe, já coloca os termos da questão: a dificuldade de selecionar 50 artistas contemporâneos que 'representem' a multiplicidade da arte contemporânea! Basta percorrer as apresentações dos artistas reunidos em ART BOOK para encontrar, de forma instigante, os estereótipos e modelos que circulam no sistema da arte contemporânea.
ART BOOK lança atenção para duas questões que me parecem fundamentais: os procedimentos de construção da história da arte bem como seus processos de legitimação. Neste sentido o projeto nos permite entender o arquivo e o documento histórico não como um dispositivo neutro e isento, mas nos alerta, como bem sinaliza Michel Foucault, para os jogos de poder implícitos nas construções discursivas.
Por outro lado, se ART BOOK é uma enciclopédia ficcional e diz respeito a artistas e obras que somente existem no imaginário do artista, não podemos dizer o mesmo do livro/objeto/enciclopédia Art Book que, enquanto ‘não objeto’, nas palavras de Gullar, se apresenta como uma obra híbrida que transita entre as artes gráficas, o design e as artes visuais.
Livro/objeto/enciclopédia/arquivo ficcional: Arte, etc.
A editora de ART BOOK não poderia ser outra; Menard, alusão direta a Jorge Luis Borges, escritor argentino, e ao conto Pierre Menard, autor do Quixote. Segundo Borges, Menard pretendia escrever o Quixote, mas não um novo Quixote, e muito menos um Quixote diferente do Quixote de Cervantes. Queria um Quixote exatamente igual ao Quixote de Cervantes, palavra por palavra. Um Quixote verbalmente idêntico ao Quixote de Cervantes.
Bruno Moreschi, de fato, desenvolve uma enciclopédia, palavra por palavra, e neste caso, temos que admitir, nada ficcional: tão boa ou melhor como qualquer enciclopédia de arte que poderíamos encontrar nas prateleiras dos melhores museus e instituições culturais do país. O processo extremante meticuloso e criativo na escolha dos nomes, dos verbetes comentados, bem como das supostas biografias de cada um dos 50 artistas apresentados; as imagens das obras, bem como a paleta de cores e as configurações do design gráfico que acompanha a edição, não deixam nada a desejar para qualquer livro de arte que se diz enciclopédico: cataloga, classifica e cria valores para um 'suposto' entendimento das artes atuais.
O desafio de apresentar o trabalho no Paço das Artes foi realizado a partir de uma pergunta que fiz ao artista: como foi o processo de criação deste livro/obra? É assim que ART BOOK se apresenta em Sala de Leitura: como uma espécie de diagrama cartográfico dos mapas mentais, visuais e iconográficos, que acompanharam a criação da enciclopédia ficcional.
A partir de aproximações visuais é possível detectar uma cartografia que se articula iconograficamente, à semelhança do Atlas Mnemosyne desenvolvido por Aby Warburg. Como se sabe o historiador alemão coloca em debate os processos narrativos tradicionais da história da arte ao propor uma nova metodologia historiográfica baseada menos em articulações temporais e cronológicas e mais em aproximações visuais .
Assim como os estudos do Atlas de Warburg, Sala de Leitura se apresenta como uma tentativa de construir uma história da arte não a partir de autores, contextos históricos permeados por ordens cronológicas e lineares, mas a partir de aproximações visuais e iconográficas. Composto por 700 imagens, o 'atlas' de Moreschi, no entanto, não se constitui somente por imagens clássicas da história da arte, mas se articula com imagens da mídia, de jornais e da internet que povoam a cultura imagética contemporânea. Assim as imagens que compoem o trabalho da suposta artista espanhola, Núria Moyano, se articulam visualmente com uma obra do artista brasileiro Henrique Oliveira e com a pintura Origem do Mundo de Coubert.
Para o Paço das Artes, instituição voltada ao fomento, difusão e memória da jovem arte brasileira, apresentar ART BOOK e sua Sala de Leitura, não somente é uma oportunidade de trazer ao público esta obra tão singular mas especialmente de dar a ver um projeto que se articula com as preocupações em torno ao arquivo e a memória da jovem arte brasileira que tem feito parte do nosso trabalho nos últimos anos.
Texto para a exposição Sala de Leitura, 31/07 - 10/11/2014, Paço das Artes, São Paulo, Brasil.