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Autoria despersonalizada
por Paulo Kühl.
Texto escrito para o projeto Art Book.

A seleção de artistas e obras apresentada aqui, por Bruno Moreschi, traz algumas questões importantes para refletirmos sobre a produção artística contemporânea, especialmente aquelas ligadas à legitimação de determinado tipo de obras e à consagração de seus criadores. Percebemos, neste conjunto, vários questionamentos persistentes no mundo contemporâneo: as transformações da natureza e seu impacto na vida do planeta, o corpo e a corporeidade, as relações de gênero e a sexualidade, uma crítica arqueológica da arte e de suas funções na sociedade, os materiais e os meios da arte, um desconforto infindável com o mundo e as dificuldades em representar tudo isso, além de muitas outras. Ou seja, assuntos que despertam o interesse de um conjunto de críticos, curadores, historiadores, e, é claro, artistas, que encontram cada vez mais espaço nas instituições promotoras das artes. A contestação, que parece ser uma marca dessa produção, é ao mesmo tempo impulsionada pelas instituições, o que às vezes se mostra como contraditório. De um lado, vemos com certo prazer o exercício constante de uma atitude crítica; de outro, surge um incômodo ao percebermos que esse impulso crítico se consolida numa aceitação que parece ser generalizada, perdendo assim parte de sua força. Outra dificuldade talvez também venha do fato de esperarmos de um artista contemporâneo internacional um percurso por grandes museus, galerias, exposições, que em alguns casos se confunde com o próprio mercado da arte, apontando para mais uma contradição.

Além disso, como o próprio editor indica, ao eleger um determinado segmento da produção artística, invariavelmente uns são incluídos; outros, excluídos. Ao observarmos o conjunto de obras selecionadas, percebemos um alinhamento de propostas com várias correntes da arte contemporânea, o que nos levaria a pensar que poderíamos trocar os artistas aqui presentes por outros nomes, obtendo um resultado muito semelhante com o que encontramos em outras coletâneas do mesmo gênero. Isso quase apontaria para uma autoria despersonalizada, que se concretizaria de maneira homogênea em variadas obras, espalhadas nas mais diversas partes do mundo. Para ecoarmos uma pergunta já um tanto antiga de Foucault e Barthes, estaríamos diante da morte do autor e do nascimento de novas relações dentro do mundo da criação artística e de sua difusão? A tentação seria verificar o Zeitgeist manifestando-se em 50 agentes distintos, mas essa abordagem já não nos convence mais. Ao mesmo tempo, parecemos estar de volta ao culto da personalidade, da individualidade, do artista-criador, do gênio que representa sua época, ou, pelo menos, de simulacros de um modelo de criação.

Apesar de estarmos diante de um impasse, este livro nos apresenta a possibilidade de reflexão. Poderíamos assumir o pessimismo de Michael Hardt e de Toni Negri e não vermos mais saída, nem mesmo a possibilidade de um dentro e de um fora, para as imbricadas relações entre arte, artistas, instituições e mercado. Não precisamos (talvez nem possamos mais) depositar nossas esperanças de uma visão crítica nas mãos de indivíduos criadores. Podemos contar, isso sim, com a oportunidade de exercer nossa faculdade crítica, com muito esforço e, tomando atentamente o caminho sugerido por Bruno Moreschi, indagar sobre aquilo que temos diante de nós.

* Paulo Kühl é professor livre-docente do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutor em História pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na New York University. Entre outras publicações, traduziu para o português e escreveu o prefácio do livro Memórias Biográficas de Pintores Extraordinários, de William Beckford (Ateliê Editorial).