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Acertos e lacunas
por Victor da Rosa.
Texto escrito para o projeto Art Book.

“Um livro, mesmo fragmentário, possui um centro que o atrai: centro esse que não é fixo, mas se desloca pela pressão do livro e pelas circunstâncias de sua composição.”
L’Espace littéraire, Maurice Blanchot.

Devo confessar que, ao passar os olhos pela primeira vez por esta enciclopédia, chamou-me a atenção certo número de artistas que, até então, eu desconhecia completamente, sobretudo os asiáticos, continente pelo qual apenas nos últimos dez ou quinze anos ousamos nos aventurar. Isso os mais aventureiros. Em meio a artistas cujos nomes circulam com grande constância, não apenas nas principais bienais do planeta senão também pelas prateleiras de nossas bibliotecas, como é o caso de H. Spencer, Richard Wolfe e o fundamental Georges Sandes, surgem também nomes agora imprescindíveis, como o de Abdu-Rafi Fayad, que, a despeito de viver em Londres há alguns anos, continua alimentando seu pensamento artístico pelas maiores controvérsias políticas originadas em seu país de nascimento, o Iraque.

O que devemos concluir disso? Que a crítica morreu? Não, absolutamente. Entre outras coisas, que a arte contemporânea está fora do eixo, e a crítica necessita, na verdade, reinventar-se. A arte está fora do eixo e nos convida, portanto, a também estar. Em outras palavras, sob pena de perder o bonde da história, a “nova geopolítica da arte” (STOYA, 2007) não nos permite mais que permaneçamos no conforto dos nossos sofás. Aliás, não é outro o assunto de que trata Fayad naquela que talvez seja a sua performance mais eloquente: Risks. Nela, mesmo amarrado por rígidas correntes, com o ímpeto selvagem e inconstante da alma feroz, o artista busca o outro. Não é apenas a crítica que olha para o artista; agora o artista também nos olha. Trocando em miúdos, não há mais bobos no mundo da arte.

Entretanto, vou confessar que, da mesma maneira, também é notável uma série de lacunas fundamentais no que se refere a uma representação global da arte contemporânea. Para ficar apenas no exemplo da América Latina, as ausências que me parecem mais cabais são a de León Ferrari, artista que ficou conhecido por causa de uma das maiores polêmicas na arte do século 21, tornando-se um dos maiores rivais do Papa Bento 16, em Buenos Aires; e a cubana, Tania Bruguera, grande parceira aliás de Georges Sandes, sempre lembrada por submeter-se a uma roleta russa na Bienal de Veneza de 2009, mas não somente por isso. É evidente que, em pleno século 21, com todas as discussões sobre a historiografia pós-moderna na ponta da língua, sabemos que qualquer representação é um recorte, mas não podemos deixar de chamar a atenção para os limites do que está visível. Afinal, um arquivo, se fala por aquilo que exibe, também grita pelo que esconde.

Nesse sentido, não será curioso, talvez sintomático, que o organizador desta enciclopédia, Bruno Moreschi, que afinal é também um latino-americano, seja de certa forma um refém de uma historiografia dominante? Sua enciclopédia está entupida com artistas de origem europeia e, sobretudo, norte-americanos, alguns de gosto absolutamente duvidoso. “Os formatos surpreendem”, escreve Moreschi sobre um dos artistas presentes no livro. De fato, surpreendem, mas pergunto: Isso basta? Há outros exemplos.

Finalmente, e nem poderia ser diferente, devemos nos perguntar sobre o próprio meio do qual falamos: O que é uma enciclopédia? Em sua etimologia, que remonta ao grego antigo, enciclopédia significa educação circular, ou seja, conhecimento geral. No entanto, é o significante circular que parece indicar justamente que “uma enciclopédia não termina nunca”. De maneira que estamos diante de um organismo vivo, que é a própria contingência do contemporâneo, e não de um corpo morto. Por assim dizer, a melhor imagem é a de uma espiral, já que a enciclopédia avança e retorna, mas jamais parte do vazio. O que nos leva à conclusão definitiva de que uma enciclopédia é só uma enciclopédia.

* Victor da Rosa é doutorando em Literatura na Universidade Federal de Santa Catarina e colabora com resenhas, crônicas e ensaios em diversas publicações culturais. Em 2010, foi selecionado pelo prêmio brasileiro Rumos de Crítica Literária do Itaú Cultural.