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O artista como moldura, a Arte como subartes.
por Sérgio Tavares Filho.
Texto escrito para o projeto Art Book.

Tão presente nessa enciclopédia, a catalogação de artistas era para mim um tema de estudo desde 2010, quando iniciei um projeto bastante abrangente de documentação de artistas em vídeo. Minha intenção era produzir uma série de entrevistas e, com o material, levantar questões teóricas que discutissem, explorassem e questionassem seus trabalhos. Durante quase três anos, dei-me conta da quantidade de artistas que atualmente temos no mundo: de A a Z, de zero a zilhões. A constatação do excesso me assustou. E, desde então, meu pensamento principal em relação à arte está intimamente aliado à criação de subdivisões.

O primeiro dos artistas do meu projeto de catalogação havia sido Juha Arvid Helminen, que encontrei num pub em Helsinki, ao lado da estação de trem. Com quase dois metros de altura, era como um buraco negro absorvendo a luz à sua volta. Tudo lhe era peculiar: as longas botas de couro, a calça de montaria, a Coca-Cola que bebia euforicamente. Falamos de genocídios, milícias e de Black Wedding, seu último trabalho. Disse ainda que sua principal temática não é, em absoluto, a escuridão. Atentei para o contraste: falaria do contraste na sua obra, procurando outros. A neve e a noite de seis meses, o sol da meia-noite, os refugiados somalis, os louros. E a situação limítrofe que resultaria da captura, em filme, do seu trabalho. Costume design, set design, fotografia, performance? As subdivisões começavam a aparecer claramente.

O não pertencimento em uma categoria e, ao mesmo tempo, a necessidade de uma criação ininterrupta de novos nichos artísticos são questões também levantadas quando se pensa em Edmund Harry, Tracey Emin ou Marie Thompson. Não falo de reprodutibilidade técnica, de aura; mas dos limites da representação, do filtro inevitável, interno e externo, e dos significados que se modificam com a popularização das DSLR, com a prática fotográfica, com a expansão da cultura do Instagram. A moldura da moldura da moldura – todas neutras, pretensamente neutras, quanto mais possível, como no Guggenheim (que chegou a Helsinki, sob licença de €23.3 milhões e o custo anual de €14.4 milhões), molduras neutras, mas patenteadas; paredes brancas mais brancas. Função fática, como a do impresso em contraponto ao espectro, do livro contrapondo o folhetim, do artista contrapondo a cópia.

Se a aura tátil esvazia-se, enche-se o espírito do artista. E, curiosamente, é algo simbiótico: o escritor do código-fonte, a janela do fotógrafo, a alma da bicicleta. O geist é o erário. Portanto, sendo a alma o geist que anima a obra (e a sua conexão com a alma do artista), todo o mais deveria ser moldura, inclusive o artista. Detemo-nos, contudo, nas pistas fáceis do que poderia, em pessoa, compor um espírito: detectamos os sinais mundanos, palpáveis, universais como medida. A escola de belas-artes X, ou o background pobre Y, a procedência nova-iorquina ou do país africano em plena guerra civil. É mais um contraponto à moldura do livro, ou do museu; as últimas, presentes, mas com a intenção de ausência; o artista, ausente, com intenção de presença. Preenchem-se, então, os espaços predefinidos por uma vanguarda que, autocraticamente, ontologicamente, é uma espécie de isótopo de si mesmo.

Certa vez, quando participava de um seminário em Berlim, em Manteuffelstraße, vi alguns dos street signs assinados pelo anônimo So and So. Pensei: “Mas as obras em questão não poderiam ser também de Bárbara Kruger? Ou mesmo de Keith Walker?” Eram artvertising, naquela tradição dos norte-americanos de contrações neologísticas. Logo vi que me enganei.

A assinatura de So and So estava acima de uma outra qualquer – que, dias depois, descobri ser de um artista de Amsterdã que havia escrito aquilo antes de ir embora para sempre. Parece-me claro concluir que, a partir da multiplicação desenfreada de nichos artísticos, o problema da autoria está parcialmente resolvido. Um artista pode ser mais um dentro da generalizante História da Arte do passado. Entretanto, em uma subdivisão ainda cheirando tinta fresca, ele facilmente pode se passar por um semideus da originalidade.

*Sérgio Tavares Filho é doutor em Cultura Contemporânea. Seus trabalhos artísticos e teóricos foram exibidos em festivais em Nova York, Los Angeles, São Francisco, Berlim, São Paulo e outras cidades. Suas pesquisas sobre o texto e a imagem contemporânea já foram publicadas em conferências na Áustria, Inglaterra, Escandinávia e no MIT (Massachusetts Institute of Technology), nos Estados Unidos. Vive e trabalha em Helsinki, Finlândia.